terça-feira, 22 de setembro de 2015

EDUARDO GONZALEZ ADVOGADO TRIBUTARISTA

PRESCRIÇÃO QUINQUENAL
E O PRINCÍPIO DA PREVALÊNCIA DA LEI MAIS BENÍGNA

Durante muitos anos vigorou o entendimento de
que o prazo para questionar a validade do ato administrativo disciplinar, era aquele
definido no artigo 1º do Decreto federal nº 20.910/32, cuja definição jurídica é a
seguinte:
Art. 1º. As dívidas passivas da União, dos Estados
e dos Municípios, bem assim todo e qualquer
direito ou ação contra a Fazenda Federal, Estadual
ou Municipal, seja qual for a sua natureza,
prescrevem em cinco anos contados da data do ato
ou fato do qual se originaram.
Todavia, vinga hodiernamente o moderno
entendimento de que essa não é a única disposição jurídica aplicável no Direito
Administrativo, mormente na seara disciplinar, quando trata do lapso temporal alusivo à
prescrição do direito de revisão do ato disciplinar.
Como exemplo, é possível verificar no Estatuto do
Servidor Público Civil do Estado de São Paulo – Lei 10.261, de 28 de outubro de 1968
–, que a revisão do processo administrativo disciplinar findo, poderá ocorrer quando a
decisão for contrária a texto expresso de lei, ou à evidência dos autos (I); quando
decorrer de prova oral, exames ou documentos falsos ou errados (II) e quando, após a
decisão, se descobrirem novas provas da inocência do punido ou circunstância que
autorize pena mais branda.
Na seqüência, pontifica o artigo 313:
“A revisão, que poderá verificar-se a qualquer
tempo, não autoriza a agravação da pena”. (grifei)
O leque de opções existente para motivar a revisão
do processo administrativo e do ato administrativo disciplinar exarado é amplo, e
garante ao punido boa margem de discussão jurídica que vai da negação de vigência de
texto de lei em vigor, até o julgamento contrário à prova dos autos.
Entrementes, o importante para este nosso artigo é
a constatação de que a revisão poderá ocorrer a qualquer tempo.
Ora, se a revisão do processo administrativo
disciplinar pode ocorrer a qualquer tempo no seio da Administração Pública, fica
evidente a possibilidade do questionamento do ato administrativo sancionatório,
também a qualquer tempo perante o Poder Judiciário, pois seria ilógico não garantir ao
punido a chance de questionar a decisão lançada na revisão do processo disciplinar em
Juízo.
Cremos em tal viabilidade, eis que se encontra em
perfeita harmonia com o princípio da segurança jurídica, responsável pela estabilização
das relações jurídicas entre a Administração e o administrado.
Note-se que as Leis Específicas não deliram dessa
previsão estatutária como, por exemplo, o artigo 122, da Lei Orgânica da Polícia – Lei
Complementar nº 207/1979-, onde consta:
“Admitir-se-á, a qualquer tempo, a revisão da
punição disciplinar...”. (grifei)
A íntima relação entre o processo penal e o
processo administrativo disciplinar induz à possibilidade de revisão dos atos punitivos,
a qualquer tempo, não sendo razoável aceitar quaisquer restrições ao interesse
revisional, mormente se a restrição atentar contra a possibilidade de reparação da
imperfeição jurídica ocasionada por um ato disciplinar irregular.
Sensível aos efeitos danosos da punição extremada
o Eminente Desembargador Silveira Paulillo, do nosso Egrégio Tribunal de Justiça,
prolatou voto lapidar, do qual um trecho precisar ser gizado visando ilustrar esta singela
reflexão sobre tema tão apaixonante, quanto o é o Direito Administrativo Disciplinar:
"...De fato, o inciso LIV, do art. 5º
da nova Constituição Federal, diz que ninguém
será privado da liberdade ou de seus bens sem o
devido processo legal. Bens aqui obviamente
compreende as coisas corpóreas e incorpóreas e,
pois, direitos. Não faria sentido entender-se que
alguém não pudesse ser privado de um simples
rádio portátil sem o devido processo legal, e
pudesse, sem ele, ser expulso da Polícia Militar,
com toda a desonra e as conseqüências
econômicas de tal ato. E ao devido processo legal
há de se dar o sentido que a ele dão os juristas
norte-americanos: significa o justo processo
legal...".1 (Grifei)
Se o ato administrativo traz conseqüências
gravíssimas à honra e ao patrimônio do punido inclusive, se agravado, impedindo-o de
prestar outro concurso público, é de rigor que se lhe dê todas as possibilidades de
reabilitação em qualquer tempo.
O Colendo Superior Tribunal de Justiça, sempre na
vanguarda da melhor interpretação do Direito Administrativo, nos brindou com outra
salutar manifestação jurídica, qual seja: a de defender a prevalência da norma mais
favorável no âmbito do processo administrativo disciplinar, garantindo, assim, o
afastamento odioso da prescrição qüinqüenal com escopo no aludido artigo 1º, do
Decreto nº 20.910/32.
1 TJSP – Ap. Civ. 203.554-1/1, rel. Des. Silveira Pulillo
Vejamos um trecho da sábia manifestação do
Eminente Ministro Arnaldo Esteves de Lima, no voto exarado no RMS 20883/PE:
“...A respeito do princípio da
prevalência da norma mais favorável ao cidadão,
reporto-me ao voto condutor do julgado em tela,
que asseverou:
Impera, na atualidade, devido à forte
influência do Direito Internacional, o "princípio
de prevalência da norma mais favorável ao
cidadão".
Sobre ele, escrevem as juristas
FLÁVIA PIOVESAN e DANIELA IKAWA,
Segurança Jurídica e Direitos Humanos: o Direito à
Segurança de Direitos. in "Constituição e
Segurança Jurídica", Coord. Carmem Lúcia
Antunes Rocha, Belo Horizonte: Editora Fórum,
2004, p. 57:
Esse princípio substitui princípios
tradicionais de antinomias: o princípio de que a
norma posterior revoga a norma anterior dispõe
sobre a mesma matéria (critério da temporalidade),
ou ainda, o princípio de que a norma especial
revoga a geral no que tem de especial (critério da
especialidade).
A justificativa para essa substituição
de princípios na solução de conflitos normativos
está ligada, justamente, à idéia de dignidade
humana e, por conseguinte, à idéia expansionista
de direitos. Aqui os critérios tradicionais de
solução de antinomias, que se orientam por uma
lógica interpretativa fundamentalmente formal
(não pautada pelos valores em jogo), são
substituídos por uma lógica interpretativa
essencialmente material, orientada pela
prevalência da norma que melhor guarida dê à
dignidade da pessoa, ou seja, pela prevalência
da norma mais favorável, mas protetiva e mais
benéfica à pessoa humana.
O princípio da primazia da norma
mais benéfica foi consolidado
internacionalmente por declarações e tratados
internacionais de direitos humanos, tanto no
âmbito global quanto no âmbito regional. No que
toca ao âmbito global, a Declaração Universal de
1948 e o Pacto Internacional sobre Direitos
Civis e Políticos explicitam que as normas
contidas nesses documentos perfazem um
parâmetro protetivo mínimo; constituem um "piso
mínimo" e não um "teto máximo" para a proteção
de direitos. Em seu art. 30, a Declaração estabelece
que "nenhuma disposição da presente Declaração
pode ser interpretada como o reconhecimento a
qualquer Estado, grupo ou pessoa, do direito de
exercer qualquer atividade ou praticar qualquer ato
destinado à destruição de quaisquer dos direitos e
liberdades aqui estabelecidos". Nessa mesma linha,
determina o Pacto sobre Direitos Civis e Políticos,
em seu artigo 5 (2) que, "não se admitirá qualquer
restrição ou suspensão dos direitos humanos
fundamentais reconhecidos ou vigentes em
qualquer Estado - parte no presente Pacto em
virtude de leis, convenções, regulamentos ou
costumes, sob o pretexto de que o presente Pacto
não os reconheça ou os reconheça em menor grau."
Outras convenções internacionais
pertinentes ao âmbito global explicitam, contudo,
com maior clareza o princípio da primazia. A
Convenção pela Eliminação da Discriminação
contra a Mulher, em seu artigo 23, estipula que
"nada do disposto nesta Convenção prejudicará
qualquer disposição que seja mais propícia à
obtenção da igualdade entre homens e mulheres
(...).
(...) a Convenção Americana de
Direitos Humanos estabelece, em seu artigo 29,
norma de interpretação que explicitam que o
exercício de direitos, reconhecidos interna ou
internacionalmente, não podem nunca ser limitado
ou excluído.
(...) Além das disposições
expansionistas contidas na Convenção Americana,
o Sistema Interamericano abarca outras, previstas
no artigo 4º do Protocolo de San Salvador, que
não admite restrições a "quaisquer dos direitos
reconhecidos ou vigentes num Estado em virtude
de sua legislação interna ou de convenções
internacionais sob pretexto de que esse Protocolo
não os reconhece ou os reconhece em menor
grau"." (Grifamos)
Nessa mesma senda, sustenta
RENATA BARBOSA FONTES, Decadência e
Prescrição Administrativas. in Revista Consulex,
Ano XVIII, Nº 37, 13.12.2004, p. 8:
"Toda lei deve ser interpretada
dentro do sistema jurídico. Não há interpretação de
norma isolada. O Direito forma um conjunto, um
todo, que tem como principal fonte a
Constituição." (grifos no original)
É oportuno registrar que entendo
incidir, na hipótese, o enunciado da Súmula
654⁄STF, que dispõe: "A garantia da
irretroatividade da lei, prevista no art. 5º, XXXVI,
da Constituição da República, não é invocável pela
entidade estatal que a tenha editado".
Ao comentar referida síntese da
jurisprudência qualificada da Suprema Corte,
ensina Roberto Rosas (Direito Sumular:
Comentários às Súmulas do Supremo Tribunal
Federal e do Superior Tribunal de Justiça. 13ª ed.,
São Paulo: Malheiros, 2006, p. 321):
A irretroatividade da lei é uma
garantia fundamental a favor do cidadão, não
podendo ser invocada pelo Estado contra o
cidadão. Na aplicação da lei retroativa não pode o
Estado alegar a irretroatividade para prejudicar o
cidadão. É uma garantia oponível ao Estado.
Com efeito, o art. 40, § 2º, inc. I, da
Lei Estadual 11.817⁄00 tem evidente caráter
retroativo, ao prever que a anulação da pena
aplicada ao integrante da Polícia Militar do Estado
de Pernambuco pode ocorrer em qualquer tempo e
em qualquer circunstância pelas autoridades ali
especificadas. Por conseguinte, o interessado tem
direito líquido e certo de ver instaurado o processo
de revisão correspondente...”.2
Do mesmo jaez é a manifestação do Preclaro
Ministro Paulo Medina:
“...A despeito de as sanções
disciplinares terem sido aplicadas na vigência do
2 (RMS 20883/PE, Rel. Ministro ARNALDO ESTEVES LIMA, QUINTA TURMA, julgado em 23/08/2007, DJ
01/10/2007 p. 291)
Decreto nº 20.910/32, cujo art. 1º previa o prazo
prescricional de cinco anos para revisão, com
fundamento no princípio da prevalência da norma
mais favorável ao cidadão, os Recorrentes possuem
direito líquido e certo de terem o mérito do seu
pedido de revisão apreciado, na via administrativa,
com base no art. 40, § 1º e 2º, I, da Lei Estadual nº
11.817/2000...”.3
Do exposto, conclui-se que s.m.j. seja possível a
revisão do processo administrativo disciplinar e do ato sancionatório dele derivado, a
qualquer tempo, tornando possível a ação judicial para questionar a legalidade da
decisão administrativa prolatada em sede de revisão administrativa, situação que poderá
ressuscitar um direito que a vetusta jurisprudência profligava, com amparo na prescrição
qüinqüenal definida no artigo 1º, do Decreto nº 20910/32.
EDUARDO GONZALEZ
advogado
3 (RMS 19942/PE, Rel. Ministro PAULO MEDINA, SEXTA TURMA, julgado em 06/10/2005, DJ 21/11/2005 p. 301

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