quinta-feira, 28 de maio de 2015

Educação domiciliar

Educar não é tarefa fácil para ninguém. Ainda mais nos dias de hoje em que as mensalidades das escolas particulares estão caras e as escolas públicas convivem com greves de professores e casos de violência entre os alunos. Para evitar ambas as situações e garantir a educação dos filhos, muitos pais estão adotando uma prática não muito comum no Brasil: a educação domiciliar. Segundo a Associação Nacional de Educação Domiciliar (Aned), trata-se de uma modalidade de educação que tem os pais como educadores. 

Apesar de não corriqueira, a prática por aqui também não é tão incomum assim. Dados da Aned revelam que cerca de duas mil famílias em todo o país educam os filhos em casa. A maioria dessas famílias vive nos estados de Minas Gerais, do Rio de Janeiro, de Santa Catarina e do Rio Grande do Sul. A entidade diz que essa não é uma tendência e depende da disponibilidade de tempo, da estrutura familiar e do nível de escolaridade dos pais. Ainda segundo a associação, os livros são os mesmos utilizados nas escolas, mas o ambiente é bem diverso daquele enfrentado nas instituições de ensino. 

Foi exatamente essa experiência pouco comum que Lorena Dias, de 17 anos, vivenciou quando saiu da escola para ser educada pelos pais, como forma de enfrentar a desmotivação no ambiente escolar. “Eu não estava me sentindo muito bem na escola. A gente, então, passou a expor a situação para outras pessoas que nos alertaram sobre a educação domiciliar, prática usualmente adotada em outros países. Eu passei a pesquisar sobre o assunto e decidi que eu queria estudar em casa como aquelas pessoas faziam e que diziam que dava certo. Eu disse que estava disposta a testar a experiência. Depois de muita conversa, eu e meus pais decidimos, em comum acordo, que a educação domiciliar seria o melhor para mim”, conta. 

Ricardo Dias, pai de Lorena, destaca que a decisão não foi tomada somente para vencer a desmotivação da filha, mas, principalmente, para proporcionar uma educação de qualidade para os dois filhos. “O que aconteceu conosco é o que ocorre com a maioria das famílias que tiram o filho da escola para educá-lo em casa. Normalmente, estamos interessados em dar uma educação de melhor qualidade, trabalhando melhor o ritmo, explorando melhor o potencial do aluno. E, aliado a isso, o ambiente escolar de hoje, infelizmente, é muito hostil. Motivados pela questão da violência, do bullying, das pressões sociais inadequadas e das greves de professores, decidimos educar nossos filhos em casa”, diz. 

Lilian Dias, mãe da jovem, conta quais foram os principais desafios enfrentados. “Fazer educação domiciliar não é ensinar conteúdo, mas, sim, ensinar a criança a aprender. O maior objetivo é levá-la a desenvolver o autodidatismo. Nós, no entanto, ajudávamos a Lorena nos conteúdos. E, quando não detínhamos conhecimento sobre determinada matéria, estudávamos juntos”. 

Rotina de estudos 

Lorena conta que sua rotina média de estudos era de três horas diárias, duas horas a menos se comparada com a carga horária média de uma escola. Para ela, isso não foi problema. “Minha rotina sempre foi bem flexível. Eu sempre tive autonomia para dividir meu cronograma de estudos. Eu estudava em média três horas por dia. Entretanto, se compararmos o tempo efetivo dedicado ao estudo, minha carga horária era maior. Isso porque na escola não ficamos cinco horas integralmente dedicados ao estudo. Essa carga horária se dispersa em outras atividades. Em casa, a gente não tem isso. Eu me sentava em silêncio e estudava, de modo que o tempo é muito melhor aproveitado”. 

Segundo o doutor em educação da Universidade Católica de Brasília, Afonso Galvão, essa é uma das principais vantagens proporcionadas pela educação familiar. “A grande vantagem é do ponto de vista da aprendizagem instrucional de natureza mais cognitiva. Isso porque a criança tem a oportunidade de experimentar uma aprendizagem no seu próprio ritmo, enquanto que na sala de aula essas dificuldades tendem a ser homogeneizadas e nem sempre são superadas com a particularidade que merecem em relação ao ritmo de cada aprendiz”, explica. 

Ainda de acordo com o professor, a educação domiciliar propicia uma oportunidade prolongada de aprendizagem. “É importante observarmos que as pessoas que se tornam muito boas em alguma coisa, certamente tiveram, em algum momento da vida, uma oportunidade prolongada de aprendizagem sob a orientação de um professor experiente. Esse é o método que utilizamos na atualidade para a formação de mestres e doutores”. 

Interessou-se pela ideia? Saiba que a educação domiciliar não tem apenas vantagens. As desvantagens existem e devem ser avaliadas com critério. O professor da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília (UnB) Remi Castioni avalia que a educação domiciliar prejudica a socialização do estudante. “O convívio com outros jovens no ambiente escolar é importante, pois é este ambiente que propicia condições de aprendizado e, também, é a escola que propicia a preparação para vida”. 

O alerta também é feito pelo doutor Afonso Galvão. “A desvantagem da educação domiciliar diz respeito aos aspectos informacional e sócio-emocional da aprendizagem. A criança, do ponto de vista do contato coletivo com outras crianças, aprende uma série de habilidades de convivência social que são fundamentais para o exercício da profissão que ela seguirá no futuro. Nesse sentido, a educação domiciliar acaba prejudicando muito esse tipo de desenvolvimento, ou seja, ao mesmo tempo em que forma jovens cognitivamente mais favorecidos cria jovens socialmente imaturos”. 

Lorena discorda de ambos. “Todas as desvantagens que eu senti no início do processo já se converteram em vantagens. Eu não fiquei sem amigos e ainda consegui me sair bem no vestibular. Todos os problemas que eu via no meu caminho foram contornados. Existem desvantagens em tudo na minha vida, mas é a maneira de você vai lidar com isso que vai fazer a diferença”, pondera. 

A falta de regulamentação também é um empecilho a ser enfrentado, conforme explica o diretor da Aned, Alexandre Magno. “Hoje nós não contamos com qualquer tipo de regulamentação do assunto no Brasil, e isso gera enormes complicações nesse ponto do acompanhamento. Existem vários modelos de acompanhamento, contudo, o que acontece hoje por aqui é um acompanhamento a posteriori”. 

Ação judicial 

Outra dificuldade está na obtenção do Certificado de Conclusão do Ensino Médio por aquele que optou pela educação domiciliar. Para tanto, os pais de Lorena a emanciparam. Não foi o suficiente. Para conseguir o certificado, ela precisou acionar o Poder Judiciário. “Quando saiu o resultado do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) eu já era emancipada. Então, a gente tentou o IFB para receber o certificado. Lá, eles mostraram pra gente que era impossível porque o Certificado de Conclusão do Ensino Médio não pode ser fornecido para menores emancipados. Por essa razão, resolvemos entrar com o processo na Justiça, porque receber o certificado era um direito meu, uma vez que eu comprovei possuir capacidade de entrar em uma faculdade”. 

O pai da Lorena já esperava encontrar tais obstáculos, mesmo com a emancipação da filha. “Eu imaginava que fosse encontrar grande dificuldade. No nosso imaginário coletivo, criança fora da escola é um horror. Em virtude dessa dificuldade, emancipamos a nossa filha antes de ela fazer a prova do Enem, e, mesmo assim, há uma resolução que diz que menores emancipados não podem obter o Certificado de Conclusão do Ensino Médio, o que é um absurdo. Sejamos honestos: um país que se diz pátria educadora negar o certificado a um jovem simplesmente porque ele não estudou na escola vai de encontro a essa premissa”, desabafa Ricardo Dias. 

O caso de Lorena foi analisado pelo desembargador federal Jirair Aram Meguerian, que, liminarmente, determinou que o Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Brasília (IFB) e o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) emitam o certificado de conclusão do ensino médio para que ela realize sua matrícula em instituição de ensino superior. A decisão reformou sentença de primeiro grau contrária à solicitação. 

Ao julgar improcedente o pedido, o Juízo da 16ª Vara da Seção Judiciária do Distrito Federal ressaltou que, na hipótese dos autos, a autora atendeu a todos os requisitos, exceto o de possuir a idade mínima de 18 anos. “O fato de ser emancipada não antecipa a idade biológica da autora, apesar de já possuir declaração pública de seus pais que a requerente já possui condições para reger a sua vida e seus bens”. O magistrado também destacou que a Resolução CNE/CEB nº 3/2010 traz proibição expressa no sentido de que participantes emancipados não podem solicitar a certificação por meio do Enem. 

Lorena, então, recorreu ao TRF1 sustentando que se submeteu ao Enem em 2014 e obteve pontuação suficiente para obtenção do certificado requerido, pedido este que lhe foi negado por contar com apenas 16 anos de idade, embora emancipada. Alegou ter sido aprovada no vestibular sem, contudo, poder matricular-se por não possuir o certificado do ensino médio. Assim, buscou a reforma da sentença. 

Para o magistrado, ela tem razão em seus argumentos. “Não se mostra razoável impedi-la o acesso ao ensino superior, tendo em vista que foi aprovada no exame vestibular, em face da ausência do certificado de conclusão do ensino, considerando seu desempenho no ENEM”, afirmou. 

De acordo com o desembargador Jirair Aram Meguerian, “ainda que a agravante não tivesse 18 anos quando realizou as provas do Enem e ainda que não o tenha agora, não me parece razoável negar-lhe o certificado de conclusão do ensino médio, pois esse não deve ser um requisito absoluto, considerando que, se a aluna teve maturidade de apreender o conteúdo programático do ensino médio suficiente para obter nota no exame, o fato de não ter 18 anos me parece irrelevante diante do bem que está sendo almejado: ingressar no ensino superior”. Com tais fundamentos, o desembargador concedeu o pedido de antecipação de tutela para determinar a imediata emissão do certificado de conclusão do ensino médio ou declaração equivalente à apelante. 

Alívio 

A decisão do TRF1 em reconhecer a validade da educação familiar foi comemorada principalmente pelos pais de Lorena, responsáveis por sua educação. “Muitos pais têm medo com relação à certificação. Eu acho que essa decisão do TRF1 abre um precedente importante e pode gerar uma jurisprudência. Estou muito feliz com a decisão. Lorena é uma das mais novas da sua turma na faculdade. Eu não falo isso com orgulho de pai, mas com a satisfação de que a educação domiciliar traz resultados positivos”, celebrou Ricardo Dias.

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