terça-feira, 10 de março de 2015


Pais respondem por mais da metade das violações de direitos de menores
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A morte de A. H. J. R., de apenas 5 anos, em Cristais Paulista (SP), no domingo, supostamente provocada pela mãe, é um exemplo extremo de que as agressões contra crianças são cometidas, na maior parte das vezes, por quem mais deveria zelar pelos filhos. Das 162 mil violações de direitos registradas nos últimos dois anos no Sistema de Informação para Infância e Adolescência (Sipia), plataforma do governo federal que reúne dados dos conselhos tutelares espalhados pelo país, um terço tem a mãe como autora do abuso ou mau trato. Em segundo lugar vem o pai, apontado como o agente violador em 20% dos casos. Juntos, eles respondem por mais da metade das notificações.

J. A. J., mãe de Adriano, confessou ter agredido o filho na última quinta-feira, após ele ter defecado na roupa que vestia e na cama. Por causa das lesões, o menino foi levado ao hospital, mas não resistiu e faleceu três dias depois.

— A situação de violência contra menores é preocupante em todo o mundo, mas o Brasil tem dados assustadores. Em número de homicídios de adolescentes, o país só perde para a Nigéria — diz Casimira Benge, coordenadora do programa de proteção do Unicef no Brasil. — Isso reflete uma sociedade que tem a violência naturalizada. Os pais reproduzem aquilo que aprenderam.

Para Casimira, a explicação para o registro de mais casos cometidos por mães em relação aos pais pode ser o número elevado de famílias monoparentais lideradas por mulheres. Além disso, são elas que, normalmente, mais cuidam dos filhos.

O poder público, ao não garantir a oferta de educação infantil, aparece em terceiro lugar na lista dos maiores violadores, em 12,9% dos registros. Pouco mais de 7% são casos em que a própria criança ou adolescente agiu de forma a ferir um direito dela, sem que tenha havido responsabilidade de outros, tais como se recusar a se alimentar ou fugir de casa sem motivo. A falta ou dificuldade de acessar a escola vem em seguida, em 6,7% das violações. Os responsáveis pelo restante dos registros (20,7%) se dividem em dezenas de categorias, tais como avós, tios, padrastos, madrastas, polícia, hospitais, empresas e igrejas, entre outros.

As informações fazem parte de um levantamento do GLOBO a partir de estatísticas do Sipia, ferramenta gerenciada pela Secretaria de Direitos Humanos (SDH) da Presidência da República, referentes ao período de março de 2013 a fevereiro de 2015, ano em que se comemora o 25º aniversário do Estatuto da Criança e do Adolescente. De acordo com os resultados, a negligência é a principal violação cometida tanto por mães quanto por pais. Traduz-se na omissão de cuidados relacionados, por exemplo, à segurança, à saúde e à educação do filho. A segunda categoria com mais notificações, 27%, é o convívio familiar inadequado, que diz respeito a uso de drogas dentro de casa, ambiente violento e falta de zelo.

— A negligência é uma violação grave. Uma mãe ou um pai que negligencia a proteção de uma criança pode responder judicialmente por isso e até perder o poder pátrio — diz Carlos Nicodemos, vice-presidente do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda).

‘FAMÍLIA NÃO DEVE SER CRIMINALIZADA’

Segundo ele, o violador, tradicionalmente, é a pessoa que tem o poder e o dever de cuidar da criança. A explicação vai desde questões culturais, como a visão machista que leva ao abuso sexual da filha pelo pai, até problemas sociais e econômicos. Ele destaca, no entanto, que a família não deve ser “criminalizada como um espaço de violação”, mas, sim, alcançada pelas políticas de combate à violência.

— Apesar da inclusão, do ponto de vista econômico, vivida pelo país nos últimos anos, isso não corrigiu a percepção da criança como objeto, o que nos coloca o desafio enorme de enfrentar a violência doméstica contra as crianças e os adolescentes — afirma Nicodemos.

Embora não tão numerosas quanto a negligência e o convívio familiar inadequado, registros de violações igualmente graves cometidas por pais e mães são verificados no país em quantidade assustadora. Foram 2.862 espancamentos, castigos corporais e tortura física denunciados nos dois últimos anos. O abuso e a exploração sexual somam 1.147 registros.

Medidas adotadas pelo governo tentam mudar essa realidade. No ano passado, entrou em vigor no país a Lei da Palmada, também conhecida como Lei Menino Bernardo, em referência a Bernardo Uglione Boldrini, assassinado em abril. Entre os acusados de envolvimento na morte do menino, que tinha apenas 11 anos, estão o pai e a madrasta. A legislação é considerada avançada e proíbe o uso da violência como medida educativa. Mas, para especialistas, isso não é suficiente.

— Mesmo após a aprovação da Lei Menino Bernardo, a cultura do entendimento ainda enfrenta muita resistência no país — diz Mônica Alkmim, presidente do Conselho Estadual de Defesa da Criança e do Adolescente do Rio de Janeiro. — É comum ouvir pais que justificam o uso da violência dizendo: “Eu apanhei e estou aqui”.

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Gerente de projetos da Childhood Brasil, entidade que trabalha na área da infância, Itamar Gonçalves destaca que grande parte das violações ocorre com a complacência de outros adultos. Por isso, é necessário que toda a sociedade se sinta responsável por denunciar violações — incluindo a escola, a igreja, as empresas e os vizinhos.

— O vizinho deve meter a colher, sim. Até porque você pode ser cúmplice de uma situação que leve, no decorrer do tempo, uma criança a falecer — afirma.

O Sipia é considerado a maior base de dados sobre o tema do desrespeito aos direitos de criança e adolescentes no país. Mas, para Nicodemos, os registros são ainda subnotificados. 

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